O PROJETO SIVAM E A BIODIVERSIDADE AMAZÔNICA: HÁ ESPAÇO PARA A CIÊNCIA NACIONAL ?

Conferência proferida por Gilberto Câmara, INPE,

na 48a. Reunião Anual da SBPC


1. PRELIMINARES

O título desta conferência, proposto pela comissão organizadora da 48a. Reunião Anual, é um necessário reflexo da situação de perplexidade vivida pela comunidade científica brasileira em função do projeto SIVAM.

Como é de amplo conhecimento, o componente ambiental do projeto SIVAM é maior iniciativa do Governo Brasileiro nesta área (medida em termos de recursos aplicados). Entre aviões imageadores, estações de recepção de imagens, hardware e software para processamento de imagens e mapas e serviços de desenvolvimento e integração associados estima-se em 200 milhões de dólares os recursos previstos. Por contraste, toda a participação brasileira na construção e operação do satélite sino-brasileiro de recursos terrestres (CBERS) está orçada em 60 milhões de dólares. Os objetivos ambiciosos do projeto, tal como apresentados por seus proponentes, incluem o desenvolvimento de uma ampla gama de produtos e serviços nas áreas ambiental e meteorológica.

Cabe perguntar: Qual a motivação dos proponentes do SIVAM ? Qual a validade técnico-científica desta iniciativa ? Qual a real contribuição esperada para o entendimento dos problemas da Amazônia e o estudo de nossa biodiversidade? E qual o papel da ciência nacional em toda esta iniciativa ?

Estas perguntas serão o fio condutor de nossa conferência, que está dividida em tres partes: inicialmente, procuramos fazer uma análise das equipes proponentes do SIVAM, visando entender a motivação da proposta. A seguir, incluimos uma avaliação técnico-científica dos componentes ambiental e meteorológico da proposta do SIVAM. Finalmente, discutiremos a estratégia de implementação do projeto, para finalmente tentar responder: há espaço para a ciência nacional no SIVAM ?


2. A MOTIVAÇÃO

Um dos aspectos que mais impressiona a todos aqueles que travaram contacto com a equipe que concebeu o SIVAM (anteriormente na ESCA e atualmente como contratados do MAer) é a grande homogeneidade de seu perfil: quase que sem exceção, trata-se de engenheiros, com larga experiência em projetos de integração de sistemas como o SinDACTA, e com uma abordagem de resolução de problemas que se pode chamar de "sistêmica". Nesta visão de mundo, dado um conjunto de requisitos e um produto esperado, realizar um projeto é reunir os recursos materiais e humanos necessários e organizar a execução de forma que os produtos satisfaçam os requisitos do "cliente".

Esta visão instrumental da execução de projetos, embora adequada para problemas de engenharia, como a construção de um satélite ou de um sistema de controle de tráfego aéreo, falha inapelavelmente quando aplicada à area ambiental.

Nos termos já classicos do filósofo alemão Jürgen Habermas em seu magistral "Conhecimento e Interesse", a teoria de conhecimento difere em função da disciplina científica de estudo. Projetos como a construção de um satélite ou de um reator nuclear são baseados no que Habermas chama de "razão técnica" (ou "razão objetiva"). Trata-se, nestes casos, de áreas aonde é possível traçar as especificações de projeto com muita precisão. Há uma verdade objetiva a ser demonstrada.

Habermas nos ensina ainda que disciplinas do conhecimento como a Geografia estão baseadas em outra forma de conhecimento, a "razão interpretativa". Neste caso, a mesma realidade pode permitir diferentes análises, em função do interesse e de posições "a priori". Os problemas nestas disciplinas raramente se prestam a especificações fechadas e precisas, que possam ser tomadas como base final para um projeto de longa duração.

Assim, um estudo ambiental (como a obtenção de um mapa de distribuição de flora e fauna da Amazônia) dificilmente pode ser reduzido a um problema de engenharia, com "inputs" bem definidos e "outputs" mensuráveis objetivamente. A mesma realidade pode dar margem a interpretações conflitantes, e só a contínua participação de cientistas e especialistas das diversas áreas pode assegurar um resultado de qualidade.

Ao aplicar, numa área tão complexa como a questão ambiental, os mesmos procedimentos que utilizam para problemas como controle de tráfego aéreo, os proponentes do SIVAM cometeram vários erros sérios:

  1. Partir do princípio de que é possível estabelecer um conjunto de requisitos fechado, que represente as necessidades das instituições brasileiras com responsabilidades na Amazônia (designadas de forma genérica como "órgãos usuários" do SIVAM).
  2. Acreditar que a tecnologia de Sensoriamento Remoto (processamento de imagens de satélite e aeronave) é possivel, por si só, de dar respostas a questões como a biodiversidade da Amazônia ou a poluição dos rios da região. Isto equivale a crer que os problemas da área ambiental podem ser reduzidos a algoritmos computacionais, realizaveis operacionalmente em ambientes "turn-key".
  3. Achar que é factível reunir um grupo de engenheiros e analistas brasileiros, com contrapartes americanos, todos muito competentes em software e sistemas mas sem vivência nos nossos problemas ambientais, e desenvolver durante quatro anos, isolados nos EUA, soluções que atendam a problemas ambientais na Amazônia e cujas "especificações" foram colhidas em entrevistas com os "orgãos usuários".
  4. Projetar sistemas centralizados e concentradores, quando a tecnologia de Informática já permite a instituições brasileiras o acesso a ferramentas computacionais para tratamento da informação geográfica. As instituições com responsabilidade de prover informação ambiental sobre a Amazônia (como a EMBRAPA, IBGE, IBAMA e SUDAM) estão todas em processos avançados de instalação de seus próprios laboratórios, onde irão poder tratar e armazenar os dados de seu interesse sobre a região. Como acreditar que estas instituições irão abrir mão de sua responsabilidade e de seus dados em favor de uma estratágia centralizadora como a do SIVAM ?

Em resumo, toda a concepção ambiental do projeto SIVAM decorre de uma visão inadequada da questão ambiental como um todo e de um conjunto de crenças (que os teóricos de filosofia da ciência chamam de Weltanschauung - visão de mundo) inadequado ao problemas ambientais. Estas limitações são um reflexo da falta de "biodiversidade" das equipes proponentes do SIVAM (tanto dos brasileiros como da Raytheon). Esta concepção gerou um projeto como problemas técnicos, que passamos a examinar.


3. A PROPOSTA TÉCNICA

Para melhor entender as limitações da atual concepção do SIVAM, passemos a examinar a proposta técnica do projeto, nas áreas ambiental e meteorológica. Nossa análise está baseada nos documentos e apresentações públicas feitas pela equipe da CC/SIVAM.

3.1 VIGILÂNCIA AMBIENTAL

Na área chamada de "Vigilância Ambiental", a proposta do SIVAM é ser capaz de produzir um conjunto de aplicações, entre as quais estão incluídas:

1. Grupo de Funções Ecosistemas

2. Grupo de Funções Hidrologia:

3. Grupo de Funções Monitoração Atmosférica:

4. Grupo de Funções Apoio ao Desenvolvimento Sustentável:

Estas "aplicações", tal como descritas, refletem muito mais um elenco de desejos colhidos de forma não-sistemática junto a instituições que trabalham na Amazônia, do que um conjunto consolidado e sólido de requisitos. Esta constatação se agrava quando se verifica que o projeto SIVAM, na área ambiental, baseia-se quase integralmente no processamento de imagens (obtidas por satélite ou aviões) e de mapas (geoprocessamento). Esta abordagem supõe implicitamente que existem metodologias estabelecidas que podem ser convertidas em procedimentos computacionais, a ser executados de forma automática ou semi-automática nos Centros Regionais de Vigilância (CRVs) a ser implantados pelo SIVAM em Manuas, Belém e Porto Velho.

Uma análise mais detalhada das "aplicações" previstas para o SIVAM permite organiza-las em tres grupos:

No Grupo I de aplicações podemos enquadrar assuntos como o monitoramento de desflorestamento e os relatórios de ocorrência de queimadas. Estas aplicações já estão implantadas operacionalmente no País. Os dados de desflorestamento da Amazônia produzidos pelo INPE são considerados a referência internacional no assunto por instituições como a FAO e o IPCC (International Panel on Climate Change). Não haveria justificativa técnica de duplicar este trabalho no SIVAM.

No Grupo II de aplicações, podemos incluir todas as funções ditas de apoio ao desenvolvimento sustentável e ainda temas como mapas de cobertura vegetal e relatórios de qualidade de água e ar. Os produtos a serem gerados neste grupo de funções encontram-se em superposição com as atividades fins de órgãos tais como IBGE, DNPM, CPRM, Ministério da Saúde, que têm atribuições específicas nessas áreas. Esses órgãos têm equipes de especialistas formadas através de um esforço prolongado e, evidentemente, o SIVAM não terá a possibilidade de duplicar tais competências.

Neste contexto, é salutar analisar a experiência do projeto RADAM. Os dados do RADAM representam ainda a melhor fonte (em muitos casos, a única) de informações sobre as características geográficas da Amazônia (incluindo mapas de geologia, geomorfologia, cobertura vegetal e pedologia). A equipe multi-disciplinar do RADAM realizou um trabalho memorável, em circunstâncias muitas vezes heróicas. Nesta perspectiva, o SIVAM - com suas aeronaves de imageamento - poderia ser um produtor de informações para que instituições como o IBGE pudessem rever e reanalisar os dados do RADAM, sem a pretensão de oferecer produtos acabados nestas áreas.

No Grupo III, encontramos temas como mapas de ocorrência de fauna e flora e monitoração e análise de enchentes, impacto de poluentes. No caso de monitoramento hidrológico, a proposta compreende o mapeamento hidrológico da região, a monitoração de áreas inundáveis, o modelamento de bacias, a predição dos efeitos de enchentes e a monitoração da poluição hídrica e das forntes poluidoras. Todas as tarefas envolvidas são complexas, e as metodologias para sua execução a partir da integração de dados de campo e dados de sensoriamento remoto não se encontram operacionais, estando na fronteira do conhecimento científico. Antes da obtenção de avanços científicos significativos não seria viável implantar estas funções em caráter operacional.

Em resumo, a proposta do SIVAM na área de Vigilância Ambiental necessita de uma completa revisão, com uma ampla participação multidisciplinar e multiinstitucional. Os conceitos "sistêmicos" de engenharia da proposta, que concebem a comunidade ambiental como um conjunto de "órgãos usuários" e o SIVAM como um "gerador de aplicações" são inadequados e devem ser substituidos por uma visão mais sofisticada que reconheça o papel de instituições como o IBGE, INPE, INPA, IBAMA, Museu Goeldi e EMBRAPA como "produtores de informação". O SIVAM deveria limitar-se a prover à comunidade os dados básicos por ele coletados (PCDs, aeronaves) e apoiar a ampla disseminação de informações ambientais no País.

3.2 MONITORAÇÃO METEOROLÓGICA

Nesta área, os problemas da proposta do SIVAM são mais óbvios. Aqui, trata-se de subestimar a competência nacional e de não realizar um trabalho básico de consulta aos órgãos com responsabilidade sobre a Meteorologia brasileira.

As aplicações de Monitoração Meteorológica do SIVAM foram especificadas de forma fechada e estanque. Nem a comunidade meteorológica civil, nem sequer a Diretoria de Eletrônica e Proteção ao Vôo (DEPV), do próprio Ministério da Aeronáutica, tiveram participação relevante nas especificações deste segmento.

A proposta do SIVAM não é consistente com o grande salto de qualidade que Meteorologia no Brasil teve nos anos recentes, após a implantação do Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos (CPTEC). O CPTEC, órgão do INPE instalado em Cachoeira Paulista, dispõe de um supercomputador para modelagem de tempo e clima, e já realiza previsões operacionais com 8 dias de antecedência.

As principais instituições responsáveis pela área no País, que formam o Grupo de Trabalho Misto de Meteorologia - GTMM (composto por INEMET, DEPV, DHN, CPTEC e DNAEE) vem tomando ações concretas para modernizar a Meteorologia brasileira. Pode-se citar, em primeiro lugar, a proposta de atualização da rede básica de observações meteorologicas para o pais. Em segundo lugar, a inauguração em marco de 1996 da Rede Nacional de Telecomunicacoes Meteorologicas (RNTM), que interligará os orgãos operacionais da meteorologia nacional com linhas de comunicação de alta velocidade. Finalmente, destaca-se ainda a iniciativa do MCT visando capacitar os estados para prover serviços na area de meteorologia. Atraves de uma parceria entre estados e Governo Federal, vários "centros aplicativos" estao sendo criados em varias unidades da Federação. Todos os centros estaduais estão conectados ao CPTEC, de onde recebem previsões de tempo na escala continental e previsões climáticas.

Os proponentes do SIVAM passaram ao largo desta realidade e especificaram, para os Centros Regionais de Vigilância, um sistema extrememamente limitado, cuja única capacidade será de receber observações, imagens de satélites e radares meteorológicos e de emitir previsões de tempo de muito curto prazo, de 0 a 12 horas, denotadas pelo jargão de "nowcasting".

Dada a vocação operacional do SIVAM, seria mais consistente com a nova realidade da meteorologia nacional que os CRVs dispussem de capacidade de previsão numérica de tempo, para que pudessem operar modelos em escalas regional e local, a partir das previsões elaboradas pelo CPTEC. Os CRVs estariam assim cumprindo o papel de centros regionais, à semelhança daqueles que esrão sendo implantados nas demais regiões do País.

Num cenário aonde os CRVs passassem a operar como centros regionais de previsão de tempo, estes centros poderiam fornecer previsões regionais com até 72 horas de antecedência. Isto representaria um significativo avanço em relação às capacidades previstas na proposta do SIVAM.

Adiconalmente, a proposta do SIVAM não leva em conta a competência já instalada no Brasil, em termos de sistemas de visualização de produtos meteorológicos. Como exemplo desta competência, o CPTEC desenmvolveu em conjunto com o Centro Europeu de Previsão de Tempo (ECMWF), um sistema para visualização de imagens, observações e previsões meteorológicas, denominado METVIEW. Este software encontra-se em funcionamento operacional no CPTEC, no ECWMF e em serviços meteorológicos de Europa, inclusive na França, Itália, Portugal, Espanha e Finlândia. No entanto, esta competência não está sendo aproveitada pelo SIVAM.

Deste modo, também na área meteorológica a proposta do SIVAM apresenta problemas graves de concepção, que precisam ser urgentemente sanados para que o SIVAM possa dar uma contribuição mais efetiva à modernização da Meteorologia no Brasil.


4. HÁ ESPAÇO PARA A CIÊNCIA NACIONAL NO SIVAM ?

Finalmente, acredito estarmos em condições de expressar um juízo de valor sobre a participação da comunidade científica no SIVAM, especialmente nas áreas ambiental e meteorológica.

Em função da análise realizada, só resta uma conclusão: mantida a atual concepção do projeto, a estratégia de implementação e as "aplicações" de Vigilância Ambiental e Monitoração Meteorológica no SIVAM, a resposta é: NÃO. Não há espaço para a ciência nacional na atual proposta, e apenas uma profunda revisão nos Anexos Técnicos do contrato, que contemplasse todos os aspectos acima mencionados, daria condições para uma participação sólida dos cientistas brasileiros.

Esta conclusão se aprofunda quando circulam infomações de que o segmento de Vigilância Ambiental do SIVAM será desenvolvido nos EUA, em Dallas, com a equipe da "E-Systems". Esta empresa é especializada no tratamento computacional de imagens obtidas por satélites espiões, sem nenhuma experiência anterior em aplicações ambientais. Para os leigos, pode parecer tudo a mesma coisa. Mas os especialistas, como o autor deste artigo que trabalha há quase 20 anos no desenvolvimento de software de Processamento de Imagens e Geoprocessamento, sabem que há uma substancial diferença entre técnicas de detecção de alvos inimigos e metodologias para apoio ao zoneamento ecológico-economico.

Depois de 25 anos da implantação da tecnologia de Sensoriamento Remoto. o Brasil adquiriu - a duras penas - uma competência única em aplicações ambientais e um respeito internacional. Esta competência devc ser vista como uma vantagem competitiva de que o Brasil dispõe num cenário de globalização e não há o menor sentido em realizar uma transferência de tecnologia às avessas.

Mas, nem tudo está perdido e não gostaria de encerrar esta palestra sem uma nota de esperança. Gostaria de ressaltar que a equipe responsável pelo SIVAM sempre se mostrou acessível e aberta ao diálogo. Assim, resta a expectativa de que os responsáveis pelo SIVAM continuem a troca de idéias e opiniões com a comunidade técnica e científica brasileira e possam ser convencidos dos problemas e da necessidade de urgente revisão nas metas do projeto.



Breve Currículo do Autor

Gilberto Câmara, 40, é engenheiro eletrônico (ITA, 1979), doutor em Computação (INPE, 1995). Trabalha na pesquisa e desenvolvimento de software para Tratamento de Imagens de Satélite e Geoprocessamento desde 1979. Coordenador da equipe que desenvolveu os sistemas SITIM/SGI e SPRING, que são utilizados em mais de 100 laboratórios de Sensoriamento Remoto e Geoprocessamento no Brasil. Gerente técnico do desenvolvimento do software METVIEW. É autor e co-autor de mais de 50 trabalhos sobre o assunto e do livro "Anatomia de Sistemas de Informação Geográfica".